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TEXTO EXCLUSIVO: Letícia Dornelles relembra seu trabalho com Manoel Carlos na novela "Por Amor"



A novela "Por Amor" estava recentemente cotada para ser a próxima reprise do "Vale a pena ver de novo", ao ver Letícia Dornelles, uma das colaboradoras comemorar a possível reprise a convidei para escrever um POST VIP e relembrar seu trabalho na novela de Manoel Carlos, confira abaixo seu surpreendente relato.


Tinha uma carreira próspera como repórter e apresentadora de TV. Comecei no Fantástico, passei para o Globo Esporte, depois Esporte Total. Quando saí do Esporte, alguma coisa me fez pensar em mudar de rumo. Buscar novos desafios. Dar uma guinada na minha vida profissional. Foi então que li um anúncio na Revista da TV sobre a Oficina de Autor da Globo. Tinha que mandar um roteiro baseado num poema. Nunca tinha feito curso algum ou escrito um roteiro. Mas fui na intuição, escrevi e enviei. Fui selecionada. De 600 trabalhos, 30 foram selecionados. Houve uma entrevista e um teste onde teríamos de escrever a mesma cena cena como comédia e drama. Desses 30, 12 fizeram o curso que tinha etapas eliminatórias. No final, ficamos eu e um rapaz. Só eu fui contratada.

Manoel Carlos estava para lançar a novela Por Amor e queria um colaborador. Pediu à Globo. Ary Grandinetti Nogueira, então diretor, me telefonou e avisou que Maneco tinha lido meu trabalho da Oficina e tinha gostado. Que queria que eu trabalhasse com ele. Quase desmaiei. Uma noite depois, estava vendo o programa da Hebe, quando o telefone tocou. Era o Maneco. Conversamos longamente. Ele disse: "gostei do seu texto. Temos química." Perguntou se eu tinha fax. Queria me enviar umas coisas. Eu não tinha. Ele: "há quanto tempo terminou a Oficina?" Eu disse: "X meses." E ele:"então você está X meses atrasada. Compre um fax."

Maneco me ligou algumas vezes. Sempre falando de mim e do trabalho da novela. Mandava algumas cenas soltas para eu conhecer os personagens que já começavam a ganhar vida.  E eu mandava textos para ele espontaneamente como se fossem os personagens falando. Imaginava cenas. Sem ainda conhecer a trama. Uma tarde, Maneco me ligou, e disse:"pode apagar a vela da promessa. Você vai escrever comigo. Está muito interessante esse nosso encontro." Fiquei feliz, apesar de achar que já estava tudo acertado desde o primeiro telefonema. Mas, naquele momento, percebi que a cada conversa estava sendo testada por ele.


E assim fomos nos falando até um dia que teria reunião no Jardim Botânico com o Paulo Ubiratan e parte do elenco. Maneco mandou que eu fosse. Cheguei à Globo e encontrei antigos colegas do jornalismo na portaria. Inclusive a Alice-Maria Reineger, que era diretora executiva do Jornalismo da Globo. Falei:" Alice, vou escrever novela." E ela:" fico feliz que você encontrou seu caminho". Admiro muito a Alice. Foi uma energia bacana naquele momento importante. Não participei da reunião, mas conversei longamente com Maneco e com o Paulo, em separado. Foi muito divertido.

Sou muito atenta a detalhes. Lembro que naquela manhã, o avião que levava o Hans Donner e a Valéria Valensa caiu no mar do aeroporto Santos Dumont, no Rio, logo na cabeceira da pista. Ninguém ficou gravemente ferido. Mas era a conversa na Globo. Maneco brincou:"O Hans não vai morrer de desastre aéreo. Um de nós (autores) é que vai matá-lo..." _ numa referência às aberturas de novelas. E, ao menos em Por Amor, Hans sobreviveu lindamente. A abertura da novela é deslumbrante.


Uma triste lembrança foi num domingo de agosto. Tinha ido levar um disquete no apartamento do Maneco. na volta, meu pai falou: "teve um acidente em Paris. Lady Di morreu." levei um choque. A princesa era minha musa. Adorava acompanhar a história novelesca daquela mulher.

Maneco era de poucas palavras. Ligava, mandava eu acionar o fax e enviava o capítulo que eu tinha de escrever. Lembro do Reveillon de 1997 para 1998. Eram 7 da manhã de 1 de Janeiro quando o telefone tocou. Não me desejou Feliz 98, nem nada. Disse apenas:"Me dá o fax". Eu estava acostumada ao jeito dele.  Mas nem um oizinho... Sofri um pouquinho. Ainda assim, foi um ano feliz.

Maneco mandou um livro sobre os "Emergentes da Barra" e, junto, o convite do coquetel da coletiva de imprensa. Achei que era para comparecer. O próprio Maneco mandando o convite. Fui. Pra que, meu Deus? Como eu estava com um problema de coluna,  minha mãe me deu carona até o Projac. Levei uma câmera para registrar o momento tão importante para mim. Tirei algumas fotos. Maneco me olhou friamente quando fui cumprimentá-lo. Na hora, estranhei. Passaram-se dias e nada de o Maneco ligar. Uma semana depois, o telefone tocou num sábado à tarde. Maneco estava furioso comigo. "Você não tinha nada que ter ido naquele coquetel. Não fez nada ainda." No susto, ponderei:"você mandou o convite. Pensei que era para ir." Daí ele continuou: " parecia uma caipira tirando fotos, com sua mãe do lado. Uma caipira ridícula." Quase sem voz, falei:" você está zangado?" E Maneco, zangadíssimo: "se eu estivesse zangado, ligaria para o Ary para te demitir." Pedi desculpas, mas ele desligou o telefone. Foi tenso. Tremia tanto. Contei parte para minha mãe. Porque ela percebeu que eu tinha levado uma bronca. Foi injusto da parte dele. Mas era o dono da novela e do espetáculo todo.  Exatamente um mês depois, um sofrido mês sem notícias, sem saber do meu futuro naquele projeto, Maneco ligou como se nada tivesse acontecido. Perguntou direto:"descansou bastante? Vamos começar..." Sim, como se tivesse sido uma folga sem maiores conflitos. Falou mais algumas coisas, que o choque me fez esquecer, e desligou. Tirei uma tonelada do meu coração. Foi uma tortura digna de Branca Letícia.

Numa outra ocasião, antes disso, eu tinha enviado aos atores uma medalhinha de Nossa Senhora, com o desejo de boa sorte. Um produtor, que fazia ponta como ator, contou que Maneco soube e mandou recolher as medalhinhas que não tinham sido entregues. Não sei onde jogaram as medalhinhas. Para um homem tão religioso, foi estranho. Du Moscovis ligou e Carolina Ferraz mandou um fax agradecendo.


O motoqueiro da Globo levava o bloco de capítulos da semana até minha casa aos sábados à noite. Geralmente, chegava à uma da madrugada de domingo. Era uma rotina deliciosa. Pegava aqueles seis capítulos e devorava. Meses antes da estreia. Assim como eu, atores, direção e produção, também recebiam. Era uma novela particular, que ninguém do público ainda conhecia. Como eu sabia quem seriam os atores, imaginava as atuações, o figurino, o tom de voz. Imaginava as próximas situações com aqueles dramas já tão íntimos meus. Cada capítulo era uma aula de roteiro. Em Por Amor, Maneco estava no auge. O texto era delicioso.

Quando comecei a escrever a novela, não fazia capítulos inteiros. Maneco me dava 8 a 10 cenas por capítulo. Mas na terceira ou quarta vez, já veio a novidade. Não parava de sair folha do fax. Era meu primeiro capítulo completo. Gelei. Dali em diante, sempre escrevi capítulos completos. Todos os personagens passaram por mim. Mas eu tinha meus preferidos. Maneco deve ter percebido, porque meus capítulos vinham repletos de cenas com eles. Principalmente Branca Letícia , da Susana Vieira, e Isabel, da Cassia Kiss. As cenas deslizavam na minha frente, como num transe. Adorava escrever para aquelas mulheres fortes e cheias de tramóias.


Assim foram 45 capítulos. Lembro de alguns dos meus preferidos, como por exemplo a sequência 124, 125, 126, quando Branca invade o apartamento de Isabel coma "amiga-capacho" Rose, após saber que a executiva era amante do Arnaldo, marido da Branca. Branca mexe em tudo, experimenta o colchão da rival, abre a geladeira e checa o que tem dentro. As cenas da Branca com a Rose e da Isabel com Arnaldo (Dolabela) eram muito divertidas. Isabel manipulava Arnaldo. Escrevia muito para Regina Braga e Paulo José,  o casal de Niterói, a turma do salão.

Lembro de um capítulo em que  Regina Braga tinha de sofrer muito pela prisão do filho Nando (Eduardo Moscovis), numa armação da Branca. Escrevi uma quase oração dela, diante da santa de devoção. Foi muito intenso. Lembro que olhei o relógio e eram 3 da madrugada. Ainda estava na metade do capítulo. Imaginei aquela mãe desesperada, solitária,  e comecei a escrever. Estava meio travada. Sabia que era uma sequência importante e tinha de ter um peso dramático. Fiz uma oração e falei: "Ivani Ribeiro, Janete Clair, se vocês puderem, me ajudem. " Foi intenso. Comecei a escrever numa rapidez, numa aflição de colocar as palavras naquela tela...As palavras iam brotando do meu coração. Mas senti que tive ajuda. Abençoada ajuda. Chorei muito escrevendo aquele desespero de mãe. Agradeço até hoje. As cenas ficaram lindas. Regina Braga deu uma intensidade divina.

Houve algumas brigas homéricas, barracos sensacionais de Laura (Vivianne Pasmanter) e Eduarda (Gabriela Duarte), Laura e Marcelo (Fábio Assunção). Tinha também a turma da Vila Santa Rita com Maria Zilda Bethlem, Tonico Pereira, Babi Xavier, Paulo César Grande, Maria Ceiça, Elisângela. Maneco dizia que queria humor ali e que "não era uma pessoa engraçada". Por isso, deixava comigo. As cenas vinham sem muita definição na escaleta. Maneco escrevia "cena de passagem, desenvolva como quiser", e dizia que eu podia usar os atores e personagens de minha preferência.


Sabia que o Dolabela era Flamengo. Li no Jornal O Globo um comentário de um amigo, Renato Maurício Prado, sobre as dívidas do clube. Escrevi uma cena com o Dola criticando o futebol e citei de leve os dados da reportagem. Dola se empolgou e colocou cacos mais fortes. Soube que deu problema. Parece que o presidente do clube na época, Kleber Leite, queria "direito de resposta" dentro da novela. Imagina o absurdo. Se não me engano, o advogado do clube, Michel Assef, era vizinho do Maneco, no Leblon. Aliás, sobre o Renato Mauricio Prado, eu tirava muitas dúvidas com ele sobre "comportamento masculino". Escrevia alguma cena do Dola e perguntava ao Renato: "Você gosta disso? Se identifica? Homem, executivo, falam assim?" Era divertido.

Sempre que falo em Por Amor, lembro da precariedade da comunicação. Maneco usava fax para se comunicar comigo. Dizia que "fax era a melhor invenção, porque o poupava de conversar com as pessoas." Eu achava graça daquele jeito dele. À medida em que nos aproximamos, e eu comecei a escrever, ele amaciou de vez comigo. Me chamava de "minha parceirinha". Certa vez, mandou um bilhete manuscrito, com um livro de presente. No bilhete dizia:" não resta a menor dúvida: você sabe escrever novelas." Para mim é um troféu que guardo com muito respeito. No meu aniversário, me mandou um livro de poesias dele. Maneco mandava as escaletas no fim da tarde. Eu abria, lia o que ele desejava, e ia jantar. Começava a escrever ás 6 da tarde e ia até 4 da manhã. Ficava ligada na adrenalina até 6. Minha mãe ia trabalhar e deixava o disquete na portaria da casa dele, no Leblon. Posso dizer que a minha mãe também ajudou Por Amor a acontecer.


Viajei de férias para a Europa e encontrei Cassia Kiss no aeroporto de Roma. Contei que escrevi muitas cenas dela. Cassia disse: "percebi que era mulher escrevendo."

Quando fui conversar com Mario Lúcio Vaz, soube que Maneco tinha me reservado para Laços de Família. Acabou que fui escrever Andando nas Nuvens. Nossos caminhos se separaram. No Natal de 98, mandei um cartão. Maneco retribuiu com um livro de poesias de Fernando Pessoa, nosso poeta preferido. Desejou sorte na novela das 7.

Tenho uma identificação de texto com Maneco. Gosto da delicadeza de seus diálogos, das famílias problemáticas e suas dondoquinhas mimadas. Foi uma grande honra estrear na dramaturgia com ele. Tem um peso na minha biografia.

Quero muito sentar e conversar longamente com ele. Tenho saudades. Muitas pessoas se incomodaram por eu ser novata e ter estreado numa novela do horário nobre. Foi complicado. Houve mal entendidos. Mas estamos mais velhos, mais sofridos, mais amadurecidos. Tenho muito carinho pelo Maneco. Vi de longe as pancadas que a vida lhe deu. Fiz muitas orações pela família dele. É como um parente distante que gostaria de ter por perto. Aprendi muito com Maneco. Eu o entendo.  Quero passar nossa história a limpo. Sempre é tempo de reescrever um novo fim.

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