Ricardo Linhares que é de casa e dispensa apresentações respondeu uma entrevista para o site recentemente. Confira abaixo curiosidades de seu último trabalho no ar e novidades de futuros projetos como Os Experientes, sua supervisão em Amor de Mãe e na Malhação 2020.
Fábio Dias: O livro Se eu Fechar os Olhos Agora foi apenas uma inspiração ou uma fiel adaptação? Conte sobre as mudanças e o que foi mais inspirado no livro.
Resposta: O livro do Edney é excelente. Eu o li quando foi lançado e logo senti que havia uma ótima base para uma série. Fiquei encantado pela amizade de Paulo (João Gabriel D’Aleluia) e Eduardo (Xande Valois); o delicado processo de amadurecimento dos garotos ao se deparar com a crueldade de certos fatos da vida adulta; e como as dificuldades que enfrentam os unem mais, fortalecendo a cumplicidade, que estava acima de diferenças sociais e do racismo dominante naquela sociedade. Mas cada meio tem a sua especificidade narrativa. O livro não tinha fôlego para uma série de 10 capítulos. Eu tive total liberdade para mudar tudo o que senti que era necessário para a trama ter mais mistérios, mais viradas e revelações. Eu mato praticamente um personagem por capítulo, gerando um clima de maior tensão e expectativa de quem será a próxima vítima. Criei personagens que não haviam no livro, como Adalgisa, ex-miss Distrito Federal (Mariana Ximenes); Edson (Gabriel Falcão); a menina Vera Lúcia (Julia Svacina); o repórter Cassiano (Pierre Baitelli); o fotógrafo Rui (Bernardo Bibancos); Danilo (Vitor Thiré), secretário do bispo, entre outros. Cresci alguns personagens como Geraldo (Gabriel Braga Nunes) e Dom Tadeu (Jonas Bloch). Inventei laços de família para Paulo e Madalena (Ruth de Souza), o romance pré-adolescente de Eduardo e Vera Lúcia, o triângulo de Cecília (Marcela Fetter), Renato (Enzo Romani) e Edson. Imaginei uma forte motivação para Ubiratan (Antonio Fagundes) investigar os crimes e bolei um passado para a Irmã Maria Rosa (Lidi Lisboa). Também mudei o desfecho do livro. Quem já leu o livro, portanto, terá muitas surpresas ao assistir à série. Mas, acima de tudo, fui fiel ao tom do romance, o que será facilmente reconhecido pelo leitor/espectador.
Rodrigo Ferraz: Vidas Provisórias de Edney Silvestre é como se fosse uma continuação de Se Eu Fechar os Olhos Agora... Você pensa em adaptar também? Quando te deu o click que você que transformar em um projeto pra TV o livro?
Resposta: Quem dera, no Brasil, houvesse mercado e dinheiro para muitas adaptações e obras originais! Nós estamos vivendo uma tremenda crise financeira que impactou a produção audiovisual. E logo no momento em que o nosso mercado está começando a se expandir. Ideias e projetos não faltam, a mim e a dezenas de escritores e diretores. Mas nosso mercado ainda é pequeno e a produção precisa ser seletiva e economicamente viável, e também ter a exibição assegurada. Genericamente falando, incluindo emissoras abertas, cabo e streaming, de cada 100 bons projetos apenas 1 é realizado. Não produzimos tipo umas 300 séries por ano como nos Estados Unidos. Eu adoraria dar continuidade a Se eu fechar... seja com Vidas Provisórias ou criando uma trama original, aproveitando os personagens. Embora o programa tenha sido originalmente concebido como uma minissérie, sem continuação. Eu estou trabalhando em duas supervisões de texto de novelas e em dois projetos pessoais. Mas se a emissora topar, eu arregaço as mangas agora mesmo.
Júnior Bueno: Como é o processo de fazer um romance ganhar as telas em forma de capítulos? Você se policia para não tomar muitas liberdades ou prefere seguir sua intuição?
Resposta: O romance do Edney foi o ponto de partida, mas a teledramaturgia tem uma narrativa própria, totalmente diferente da literatura. Livro é palavra, roteiro é ação. O que é descrito num livro precisa ser traduzido em movimento, gerando a expectativa de acompanhar aquela trama de uma outra forma e num outro ritmo. A palavra escrita tem encantamento. A imaginação do leitor vai preenchendo certos espaços que o escritor não especifica muito. Mas num roteiro o comprometimento do espectador é outro. As motivações dos personagens precisam ser mais fortes para gerar outra espécie de credibilidade. Em Se eu fechar... o melhor exemplo é o de Ubiratan. No livro, funciona bem: era um velhinho que se interessava pelos crimes por causa do tédio na vida do asilo. Eu senti que isso era pouco como motivação. Não renderia gancho de final de capítulo nem criaria vínculo emocional entre ele e os demais personagens. Então, inventei um passado para Ubiratan e uma forte motivação para ele se mudar para aquela cidadezinha, se esconder no asilo e investigar a morte de Anita. Assim, ele passou a se envolver mais na trama. Ele corre perigo. Não está ali à toa. Em vez de tédio, o que impulsiona suas ações é a sua emoção, o seu coração. Sem todas as liberdades que tomei, não haveria tramas, segredos e reviravoltas para sustentar 10 capítulos. O grande desafio do adaptador é ser fiel ao tom da obra original. Quem se interessa pelo assunto, pode ler o livro e acompanhar a série ao mesmo tempo. Para dar outro exemplo para os interessados no processo de adaptação, há o bom livro Me chame pelo seu nome, escrito por André Aciman, que James Ivory transmutou num roteiro maravilhoso, ganhador do Oscar de melhor roteiro adaptado, em 2018. Quem leu o livro, sabe que Ivory tomou muitas liberdades para construir uma narrativa cinematográfica, o que é bem diferente de uma narrativa literária. Em Tieta, que Aguinaldo, Ana Maria e eu adaptamos, em 1989, o ponto de partida é o livro de Jorge Amado, mas o recheio dos quase duzentos capítulos da novela é criação original nossa. Para quem curte o tema, eu sempre sugiro que leia o livro que gerou uma adaptação, enquanto assiste ao filme, à série ou à novela.
Júnior Bueno: Se eu fechar os olhos agora estreou primeiro no streaming pra só depois vir para a TV aberta. Para você há alguma diferença entre os públicos das duas plataformas? Como você avalia este mercado que tem surgido?
Resposta: O streaming é poderoso e veio para ficar. Mas ainda está evoluindo e se popularizando. O Brasil não é a Zona Sul do Rio nem os Jardins de São Paulo. Num país com tantas dificuldades econômicas como o nosso, o streaming ainda está fora do alcance para grande parte da população, que não tem acesso uma boa internet, quando tem internet. Claro que o panorama está mudando, e hoje em dia a velocidade das mudanças é altíssima. Mas a plataforma ainda é restrita e atinge um público segmentado. Portanto, o espectador do streaming não é o mesmo do cabo nem o mesmo da TV aberta. Quem assistiu à série no lançamento no NOW da Net não é o mesmo espectador que está assistindo agora no Globoplay. Embora ambos sejam transmitidos pela internet, são “canais” diferentes, digamos assim. Quem paga o acesso ao NOW não necessariamente paga o acesso ao Globoplay, e vice-versa. Tampouco é o mesmo público que assistirá na Globo, a partir de 15 de abril. Eu sempre tenho em mente a diversidade do público brasileiro e sei que a maioria das pessoas não têm as mesmas condições de acesso que uma minoria mais economicamente privilegiada tem. Enfim, há enorme diferença entre todos esses públicos. E minha série só teve a ganhar com esse sistema de exibição atípico. O NOW NET comprou, pela primeira vez, a exclusividade de lançamento de um produto inédito, antes de ser exibido na TV aberta ou no cabo. Após cumprir esse ciclo contratual, a série foi para o Globoplay e irá para a Globo, que ainda é a grande vitrine de exposição. Como essa trajetória, o trabalho atingiu um público maior e mais variado.
Rodrigo Ferraz Sua versatilidade é ímpar. Tem alguma novela ou algumas que você ache mais a sua cara? E tem algum personagem muito parecido com o Ricardo Linhares como pessoa?
Resposta: Tem um pouco de mim em tudo o que faço. Eu não preciso escrever sobre a minha vida para ser um trabalho pessoal. Como escritor, eu transito por diferentes gêneros e estilos. Posso escrever realismo mágico ou uma trama policial. Em tudo, há a minha digital. Vamos tomar como exemplo Saramandaia, Babilônia e Se eu fechar os olhos agora. São três obras completamente diferentes umas das outras. Mas em todas eu falo dos mesmos temas que são importantes para mim: intolerância, discriminação, respeito às diferenças e à diversidade, combate ao racismo, ao preconceito, à homofobia. No episódio que escrevi para o seriado Os Experientes, que é uma criação original minha, abordo os mesmos temas. Será dirigido pelo Dennis Carvalho e protagonizado pela Ruth de Souza. O seriado ainda está em fase de pré-produção. Para mim, não faz diferença se é um remake, um trabalho escrito em parceria, uma adaptação ou uma ideia original minha. Quem se dispuser a analisar, verá que a temática é sempre a mesma. Como pessoa, eu estou totalmente na Adalgisa, personagem que criei para a série. As tiradas irônicas dela e o modo pragmático de encarar a vida são meus.
Rodrigo Ferraz: É verdade que Amor de Mãe, novela de Manuela Dias terá sua supervisão? O que você pode contar sobre a trama? E como é o seu trabalho nela?
Resposta: Desculpe, mas não posso contar nada sobre a trama, não seria ético. Eu nunca falo sobre os trabalhos em que faço supervisão de texto. Manuela tem uma trama ótima e criou personagens interessantíssimos. A novela dela tem tudo para ser um estouro.
Rodrigo Ferraz: Já saiu na imprensa que você tem vontade de adaptar O Grito, o que você pode falar sobre?
Resposta: Sim, tenho o projeto de transformar O Grito num seriado. Não é o remake da novela. É uma outra abordagem, mantendo o ponto de partida da história do Jorge Andrade, um dos dramaturgos que eu mais admiro e cujas peças foram marcantes na minha formação, ainda adolescente. A Globo comprou o baú de peças e novelas dele, mas eu ainda não estou trabalhando nisso, está na fase de projeto, mesmo.
Fábio Dias: E novelas das nove? Algum projeto já pensado?
Resposta: No momento, além da supervisão da novela da Manuela eu também estou fazendo a supervisão de texto de Malhação 2020, da Priscila Steinman. E desenvolvendo os capítulos de uma série livremente inspirada no livro Cacau, do Jorge Amado.
Júnior Bueno: Qual é o papel de um autor de novelas hoje em um país cujo governo festeja o aniversário da ditadura?
Resposta: Toda arte é política. Até a ausência de arte é uma posição política, contraria à arte. Eu tenho convicção do papel fundamental da teledramaturgia ao abordar temas relevantes e progressistas, sem impor um ponto de vista nem ser panfletário, mas levantando a discussão e a troca de ideias. A dramaturgia pode tocar o coração das pessoas e ajudar a abrir as mentes para que haja respeito à diversidade e à liberdade.
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