Por Rafael Barbosa
Você pode odiar as atitudes do Christian, protagonista de “Um
lugar ao sol”. Pode, inclusive, não torcer por ele. Mas precisamos concordar
que seu intérprete, Cauã Reymond, está brilhando no papel, certo?
Nos últimos vinte anos, pudemos acompanhar o amadurecimento
profissional de Cauã a cada novo trabalho. Se lá no início de sua carreira, a
beleza e o carisma podem ter lhe servido como trampolim, foi o trabalho duro e
o gosto por desafios que o consagrou como um dos melhores atores de sua
geração. Hoje, ele não tem mais nada a provar. Não à toa, é um dos nomes mais
requisitados do mercado audiovisual.
Na atual novela das nove, assinada por Lícia Manzo e dirigida
por Maurício Farias, o ator vive o melhor momento de sua trajetória em novelas.
A sensação é a de que tudo o que ele fez antes o preparou para este personagem,
que tem se revelado dificílimo.
Afinal, como interpretar um protagonista de novela que praticamente
não sorri? Pelo menos, não genuinamente.
“Cauã pobre” e “Cauã rico”
Nos capítulos iniciais, a grande dificuldade de Cauã se
concentrava em interpretar dois personagens ao mesmo tempo. Ele já tinha tido
essa experiência na ótima minissérie “Dois irmãos”, que foi ao ar em 2017. Mas
lá, a proposta e a linguagem eram outras.
No caso de “Um lugar ao Sol”, que demanda uma composição naturalista, Cauã precisou não apenas diferenciar os gêmeos Christian e Renato, mas fazer com que essa dupla composição trouxesse à tona todo o sentido da trama imaginada por Lícia:
O quanto as condições em que você é criado e o contexto em que você vive, determina as oportunidades que você recebe na vida?
Cauã entendeu a sua responsabilidade e no terceiro capítulo,
marcado pelo encontro dos gêmeos, um dos meus favoritos de toda a novela, ele
proporcionou um verdadeiro espetáculo com sua atuação, auxiliado por uma
direção afiada e um texto de grande sensibilidade.
Os dois irmãos passam uma madrugada juntos, se reconhecendo
e se acolhendo. Foi um encontro cheio de significado e complexidade, que
mostrou o quão próximo eles eram um do outro, mesmo sem nunca terem se visto,
ao mesmo tempo em que um abismo social e econômico os separavam. Renato e Christian
não tinham nada de parecido além do rosto e do corpo.
Mas, ao contrário do que enfatizava o material de divulgação de “Um lugar ao sol”, a novela nunca foi sobre gêmeos que trocam de lugar. Desde antes da estreia, Lícia já tinha afirmado em entrevistas que a história que pretendia contar era sobre um homem que se corrompe. E é isto o que estamos assistindo há pouco mais de três meses.
Herói ou vilão?
Com a morte de um dos irmãos, temi que Cauã brilhasse menos sem a magia dos gêmeos, mas meu temor se mostrou infundado. O maior desafio ainda estaria por vir. A dificuldade agora era interpretar um personagem que, nas palavras de Lícia Manzo, “representa um homem que se aliena de si próprio”.
É curioso tentar imaginar o que a autora estava a pensar ao
conceber o protagonista de sua história. Cristian parece não ter sido feito para
ser carismático ou simpático.
Ele não é um mocinho, como alguns gostariam, aliás, está bem longe disso. Mas também não é um vilão, ainda que suas atitudes sejam condenáveis
e o público esteja torcendo para que ele se ferre logo. Um anti-herói, talvez?
Mas neste caso, de alguma maneira seria preciso existir um ponto de
identificação mais evidente entre ele e o público, já que as pessoas costumam ser empáticas com anti-heróis.
Bom, com três novelas no currículo, já sabemos que Lícia não se prende de forma rígida a esses arquétipos. Seus personagens são quase todos contraditórios, falhos, que fazem a gente odiar num momento e amar no outro.
Já me peguei brigando com a tela diante de atitudes de tipos mais positivos
como Lara (Andréia Horta), Noca (Marieta Severo) e Rebeca (Andréa Beltrão) e até Ravi (Juan Paiva), por exemplo. A Bárbara de Aline Moraes então, mesmo sendo uma mulher mesquinha, preconceituosa, elitista, perversa até, em vários momentos me desperta compaixão.
Logo, Christian, ou melhor, o “Cauã tóxico”,
como ele vem sendo chamado na internet, ainda que se comporte como um canalha,
é sim um personagem complexo, cheio de camadas, e que não nos deixa, de forma alguma,
indiferentes.
Como disse antes, uma coisa que notei lá nas primeiras
semanas, é que Christian nunca sorria. Estava sempre de cara amarrada, com o
olhar endurecido, o cenho franzido, uma postura defendida, desconfortável, algo
muito incomum em um personagem que carrega o protagonismo de uma novela. E é justamente isso que me
atrai no personagem, mesmo reprovando sua conduta, e também o que me encanta no trabalho de Cauã.
Um arremedo de si próprio
Este é um caso de um protagonista que acha que precisa
alcançar determinado objetivo, mas que no meio do caminho percebe que está perseguindo
o objetivo errado.
Christian cresceu com o sentimento de rejeição, alimentando
a frustração de não ter recebido da vida aquilo que ele achava que devia
receber. Cobiça, inveja, rancor, são emoções que o constituíram desde muito
jovem, mas que não o impediram de ser também alguém empático, com senso de
justiça, de honestidade, etc.
Quando assume o lugar do irmão, Christian, na realidade sucumbe às suas fraquezas. Não está conquistando o lugar ao sol, como acredita, muito pelo contrário.
Está certo que ele se encontrava em uma posição em
que as alternativas que tinha eram as piores possíveis, mas ao escolher ser um
usurpador, o personagem cruza uma fronteira perigosa, que o conduz para uma
espiral sombria, em que os piores traços de sua personalidade se
fundem com os do irmão morto, cujo papel ele passa a ter que desempenhar.
Tenho a impressão de que ele percebeu isso muito rápido,
mas já não dava mais para voltar atrás. É aí que Christian começa a ser
engolido por Renato. Porém, nos poucos momentos em que o protagonista se
desarma, em especial quando está com Ravi (Juan Paiva) ou Lara (Andréia Horta), fica nítido que o Christian de
antes ainda está lá, se debatendo para emergir.
Tudo isso é sentido nas escolhas que Cauã faz como ator. Pouco ou quase nada é genuíno nesse personagem, porque ele simplesmente não pode ser ele mesmo. Está empedrado dentro de outro. Cauã trabalha de forma genial o subtexto que o papel lhe oferece. Revela a asfixia de Christian atuando com o olhar, com os gestos curtos, comedidos e, em especial, explorando de forma inteligente os silêncios.
O que estamos vendo agora, neste ponto em que a novela caminha
para a reta final, pode ser o início do resgate de Christian. É certo que ele
deve arcar com as consequências do que fez. O Brasil, digo, os telespectadores que deram os 20 pontos de audiência que a trama vem marcando - e me incluo feliz neste grupo - precisam vê-lo
desmascarado (risos), até porque se existe a possibilidade de redenção, é só com esse enfrentamento que ela se dará.
Confesso que estou doido para ver como Cauã irá se sair neste momento. Espero vê-lo se derramar na tela ao libertar Christian de sua prisão. E por tudo o que vimos até aqui, acredito que ele irá dar mais um show.
O início da novela teve um ritmo vertiginoso, tudo aconteceu muito rápido e talvez tenha faltado tempo para que as pessoas contemplassem de forma mais ampla as angústias e demônios de Christian, até para comprende-lo melhor durante a troca e serem mais empáticas. Está aí, a desvantagem de uma novela fechada!
Grandes encontros
Do mais, gostaria de destacar as parcerias incríveis que Cauã travou com alguns de seus colegas de elenco. Cada jogo de cena maravilhoso com: Aline Moraes e Andréia Horta, seus amores; com José de Abreu, uma espécie de mentor; com Ana Beatriz Nogueira nos embates fervorosos entre mãe e filho; com Daniel Dantas, seu maior antagonista externo; e com o amigo/irmão Ravi, brilhantemente interpretado pelo encantador Juan Paiva (ainda quero fazer um texto só para ele), voz da consciência e que cultiva o pouco do Christian que restou no impostor.
Pelo período que foi exibida e até pela falta de cuidado com a divulgação da novela, acredito que "Um lugar ao sol" deve ficar de fora das premiações deste ano, o que é uma pena. O trabalho de Cauã merecia um reconhecimento a altura do que ele está entregando. O ator foi gigante e, a despeito dos sentimentos do público em relação a Christian, ele sai vitorioso por ter segurado a onda com um papel tão complexo e difícil. Cumpriu sua missão com louvor e merece todos os aplausos e cumprimentos!!
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