Por Rafael Barbosa
Nick (Kit Connor) e Charlie (Joe Locke), protagonistas de Heartstopper / Reprodução: internet |
No passado, ser uma pessoa LGBTQIA+ significava ter boa parte da vida suprimida, sobretudo aquela que abrange a adolescência.
Enquanto a maioria das garotas e garotos viviam os dilemas comuns dessa fase difícil e cheia de mudanças, nós precisávamos lidar com o fardo de ter que negar quem somos e de temer ser descobertos por algo que a gente ainda nem sabia direito o que era.
Viver um romance então, era algo impossível. Se acontecia, não era sem culpa e medo.
A descoberta do primeiro amor, aquela coisa de mandar cartinha, de pedir pro amiguinho intermediar uma conversa, dar o primeiro beijo e contar para os colegas de classe, etc. essas são experiências importantes e das mais belas da vida que a gente não pôde viver.
Mas felizmente, para as gerações mais novas, embora ainda não seja fácil, as coisas melhoraram muito. As narrativas audiovisuais têm grande contribuição nisso.
Uma história desejada
Se para a turma da antiga, assistir a um drama adolescente significava acompanhar histórias e situações que dificilmente poderiam ser experimentadas na sua vida, para os jovens LGBTs+ da atualidade, esses filmes e séries trazem um mundo de possibilidades e uma injeção de ânimo, auto-estima e coragem para enfrentar barreiras e preconceitos.
Toda essa introdução é para demonstrar a importância e a beleza de uma obra como "Heartstopper", série que entrou para o catálogo da Netflix no último mês (22/04) - adaptação de um conjunto de histórias em quadrinhos de mesmo nome - e que vem arrebatando milhares de fãs.
Uma série atual, que dialoga diretamente com o público adolescente, mas que também encanta "jovens" de quase 30 anos como eu e até mesmo os mais velhos.
A história de Nick Nelson (Kit Connor), Charlie Spring (Joe Locke) e de seus amigos é a história que eu sempre quis ver nas telinhas quando tinha os meus 16 e 17 anos. Tenho lido o mesmo nos comentários que os internautas vêm fazendo na internet.
Sinto que a série, de certa forma, devolve àquela parte bonita da adolescência que foi negada a toda uma comunidade por muitas gerações.
O rompimento com a tristeza e tragédia que marcam as histórias de temática LGBTQIA+
Nick e Charlie juntos em cena / Reprodução: internet |
Durante anos, a maioria das obras audiovisuais que se dedicaram a abordar as questões da comunidade LGBTQIA+, salvo algumas exceções, sempre o fizeram trazendo a perspectiva da dor e do sofrimento, com enfoque no preconceito e na exclusão que essas pessoas sofrem.
Tanto é assim, que filmes com essa temática ganharam a fama de serem sempre tristes, pesados e trágicos, como se um casal de homens ou mulheres nunca pudessem ter uma jornada mais positiva, com direito a um final feliz.
O clássico "O segredo do Brokeback Moutain" protagonizado por Heath Ledger e Jake Gyllenhaal, é sempre o primeiro exemplo que vem à cabeça. Uma história de amor impossível que termina em morte.
Penso que esses filmes tiveram sua importância e continuarão tendo espaço, pois ainda se faz necessária a denúncia de uma realidade que persiste em ser violenta para com esses grupos.
Porém, é cada vez mais comum se deparar com histórias que buscam trazer novos tipos de abordagem, que não mais enfatizem a dor.
Isso é, além de uma demanda do público, uma demanda de mercado. A repercussão e os números de "Heartstopper" estão aí para provar.
O valor da utopia
Lázaro Ramos, em recente entrevista para o Roda Viva da TV Cultura (11/04), em que falou de seu primeiro filme como diretor, o "Medida Provisória", - que vem fazendo uma trajetória bonita no cinema - discorreu sobre a importância da utopia e se mostrou um grande defensor deste movimento.
Uma de suas falas no programa, sobre as narrativas negras, pode ser estendida para as demais histórias que tratam de grupos historicamente oprimidos:
O meu problema, por exemplo, quando eu assisto um filme que fala da nossa dor e do nosso sofrimento, é quando ele não me oferece uma alternativa que me liberte, que me dê um caminho"
Esse deve ser o rumo das produções do futuro. Para enfrentar uma realidade dura, talvez mais eficiente que o confronto puro, seja mostrar a beleza que mora nas diferenças, invocar a fantasia, o lúdico, o afeto e a esperança na hora de contar essas histórias.
Elenco teen de Heartstopper - Reprodução: internet |
Há quem critique essa abordagem, alegando que a série pode formar jovens despreparados para lidar com a violência e opressão. Porém, que tipo de vida um jovem gay ou trans pode ter se acreditar que a única jornada possível para ele é a do enfrentamento?
É imprescindível recriar imaginários a partir dessas obras e conceder a milhares de jovens que estão se descobrindo, o direito de sonhar com uma estrada mais leve, quem sabe com uma história de amor no meio e um final feliz.
"Heartstopper" oferece tudo isso de um jeito muito especial. Não me lembro de ter assistido algo parecido. Talvez o mais próximo tenha sido o filme de Daniel Ribeiro, "Hoje eu quero voltar sozinho", de 2014, que também trouxe um romance gay na adolescência com muita naturalidade e com leveza.
Mas a série de Alice Oseman consegue ir além, por apresentar algo tão familiar com uma roupagem nova.
Embora "Heartstopper" carregue a etiqueta de "série LGBTQIA+", ela é acima de tudo uma série teen, permeada pelo drama e pelo romance e que traz elementos reconhecíveis em todos os produtos audiovisuais que tratam desse universo. Até por isso, todas as pessoas podem se identificar.
Está tudo lá: a figura do valentão, o grupo dos esportistas, os que tocam na banda, os nerds, as amizades, as descobertas, as questões de identidade, a relação com os adultos, tudo o que a gente já assistiu diversas vezes, com a diferença de que a maioria dessas histórias sempre foram protagonizadas por casais heterossexuais.
Equilíbrio na abordagem
Darcy (Kizzy Edgell) e Tara (Corinna Brown) / Reprodução: internet |
Mesmo fazendo essa opção pela leveza e até mesmo pela ingenuidade, a série não deixa de falar da dor, ainda que ela não seja o foco. O bulliyng homofóbico, a transfobia da direção do colégio; a angústia de um dos protagonistas em se descobrir atraído por outro garoto; são fatores importantes para o enredo, mas que são inseridos com sutileza.
A trama tem como protagonistas um casal de dois garotos, Charlie, que é abertamente gay, e Nick, o jogador de rugby que se descobre bissexual. O foco é a paixão deles. Mas o tempo de tela é muito bem dividido entre o romance central e as histórias dos coadjuvantes, que cresceram de importância em relação aos quadrinhos.
É nítida a preocupação em abraçar as várias letrinhas da sigla.
Nas tramas paralelas, podemos ver o casal lésbico formado por Tara (Corinna Brown) e Darcy (Kizzy Edgell), que vivem seus próprios conflitos quando assumem publicamente o namoro. E vemos também a personagem Elle (Yasmin Finney), uma garota trans que se transfere do colégio de meninos para um só de meninas e que vive as dificuldades da adaptação. Ela também se apaixona por Tao (William Gao), um de seus melhores amigos.
Elle (Yasmin Finney) e Tao (William Gao) / Reproduçã: internet |
Além do romance, as relações de amizade têm um espaço grande na história. É bonito acompanhar como esse grupo fortalece os laços, como todos se cuidam e se protegem.
Série para aquecer corações
A delicadeza é o que dá o tom de "Heartstopper". Todos os conflitos são desenvolvidos com sensibilidade e são bem encadeados. Um grande trunfo também é a profundidade dos personagens. Tudo é muito verdadeiro. As relações são bem construídas e os diálogos bem colocados. É o que os internautas costumam chamar de " série que dá um quentinho no coração".
A produção é caprichadíssima e trilha sonora é bem escolhida, gostosa de ouvir.
Trazer as ilustrações dos quadrinhos para colorir a tela na hora de pontuar as emoções das personagens, se mostrou uma ideia certeira, que contribui para o encantamento que a obra provoca.
O elenco é muito bem escalado, diverso, com atores que de fato parecem adolescentes, e que dão um banho de carisma.
A grande Olívia Colman, atriz premiada, faz uma participação ilustre como a mãe de um dos protagonistas e entrega umas das cenas mais lindas que já assisti.
Olívia Colman como Sarah Nelson, mãe de um dos protagonistas / Reprodução: internet |
Um grande sucesso
Tudo isso explica a enorme aceitação que a série vêm tendo no Brasil e no mundo. Ela já é considerada um dos mais novos "hits" da Netflix.
Os números alcançados são impressionantes: foram 14,5 milhões de horas assistidas só nos três primeiros dias. Além disso, no mesmo período, ficou entre as mais vistas no ranking mundial, ocupando a 7ª posição entre as séries de língua inglesa.
Fica agora a expectativa para as próximas temporadas. Até o momento, a plataforma ainda não anunciou a renovação da série, mas a criadora, Alice Oseman, já anunciou que precisa de quatro temporadas para dar conta de todo o arco de seus personagens.
Nick e Charlie / Reprodução: internet |
Por todo o exposto acima, "Heartstopper" se consolida como um marco importante no histórico de narrativas LGBTQIA+ e abre caminho para projetos parecidos.
Que a gente possa desfrutar de mais histórias que falem da beleza da diversidade e que a gente possa acreditar que o caminho a seguir pode ser bom, apesar da realidade.
Adaptando aquele verso da canção "AmaRelo" do super Emicida, entoado por ele, Majur e Pablo Vittar:
Permita que eu veja, não apenas as nossas cicatrizes, pois elas são coadjuvantes. Não, melhor: figurantes!
Ps: Para quem ainda não viu, por favor, veja Heartstopper! Recomendadíssima!!
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